Por Rodrigo Rodrigues
Vivemos tempos curiosos. Há quem acorde às seis da manhã, enfrente ônibus lotado, pague juros abusivos no cartão e, mesmo assim, sinta no peito o calor nobre de quem “empreendeu” a própria miséria. É o portador da Síndrome do Milionário — um tipo social cada vez mais comum, que idolatra bilionários, defende seus privilégios e acredita, de coração, que está apenas a um curso online de “mentalidade vencedora” de se juntar ao clube dos donos do mundo.
Esses devotos da fortuna alheia não enxergam o abismo que os separa de seus ídolos. Chamam o patrão de “visionário”, o aumento de lucro das empresas de “mérito”, e o congelamento de salário de “ajuste necessário”. Quando o bilionário compra um iate de 200 milhões, eles dizem “ele merece”. Quando o governo aumenta o imposto sobre jatinhos, eles se indignam — afinal, é um “ataque à liberdade”.
A ironia é que essa turma, que mal consegue pagar o boleto da internet, defende com unhas e dentes a redução de direitos trabalhistas, como se o próprio Elon Musk estivesse prestes a convidá-los para o conselho da Tesla. Na prática, é um exército voluntário de relações públicas do capital, sempre pronto para justificar a desigualdade com citações de autoajuda e vídeos motivacionais de 30 segundos.

Na cabeça do portador da síndrome, o mundo é uma meritocracia perfeita: se o bilionário chegou lá, foi porque acordou cedo, acreditou em si mesmo e “não reclamou da vida”. O detalhe de que ele herdou uma fortuna, estudou nas melhores universidades do planeta e teve uma rede de contatos milionária é considerado irrelevante — ou pior, “inveja de quem não se esforça”.
Mas talvez o aspecto mais fascinante da Síndrome do Milionário seja a ilusão de pertencimento. É o fenômeno do sujeito que ganha em reais, mas sonha em dólares; que comemora a queda de impostos para iates enquanto calcula o preço do botijão de gás. É o cidadão que, ao ver um bilionário demitir 10 mil funcionários “por eficiência”, diz: “Está certo, empresa não é caridade”.
Afinal, ele acredita piamente que um dia também precisará “fazer cortes duros” — claro, assim que terminar de pagar o carnê da loja de eletrodomésticos.
No fundo, a síndrome é uma mistura de aspiração e autoengano, um conto de fadas neoliberal que transforma desigualdade em virtude e submissão em orgulho. O portador vive de esperança, defendendo os donos do mundo enquanto o mundo o ignora.
E quando alguém lhe diz que talvez, só talvez, ele esteja sendo manipulado, ele reage com indignação:
“Você fala isso porque é contra quem vence na vida!”
A Síndrome do Milionário (Parte II): o pobre que sonha com o paraíso fiscal
Há algo de quase poético na forma como o portador da Síndrome do Milionário se comporta no dia a dia. Ele não tem ações na bolsa, mas fala como se tivesse um império a perder. Reclama dos impostos “que sufocam o empreendedor” — mesmo sendo funcionário com holerite e vale-transporte. E se alguém critica um magnata por ter recebido incentivos públicos, ele retruca com brilho nos olhos:
“Mas é assim que se gera riqueza!”

Ele fala com propriedade sobre “livre mercado”, embora nunca tenha sentido o gostinho de um mercado livre — aquele onde o preço do arroz não muda entre o caixa e a prateleira.
Assiste vídeos motivacionais em que bilionários ensinam “a pensar grande”, mas continua achando que férias de 10 dias no litoral é luxo.
No fundo, acredita que defender os ricos é uma espécie de investimento espiritual — uma forma de se credenciar ao sucesso por osmose, como quem fica perto do palco esperando que o suor do cantor traga talento.
Nas redes sociais, a Síndrome se manifesta em seu habitat natural.
Ali está ele, debatendo com fervor, defendendo o dono da empresa que o demitiu, atacando o “assistencialismo”, explicando para os outros pobres por que não deveriam reclamar.
“Tem que empreender!”, diz — mesmo que o único empreendimento que já teve foi vender uma bicicleta para pagar o cartão de crédito.
Quando o bilionário vai ao espaço, o portador vibra: “É o espírito humano conquistando o universo!”
Quando o bilionário corta salários, ele filosofa: “É a eficiência do capitalismo.”
Mas quando o governo tenta taxar lucros astronômicos, ele grita: “Comunismo!”
E assim segue o ciclo da ilusão: o cidadão comum, cansado e mal pago, acreditando ser parte de um clube que jamais o deixará entrar.
Enquanto o bilionário compra mais uma ilha, o “milionário de espírito” compra mais um livro de autoajuda em 12 vezes no cartão.

No fim das contas, a Síndrome do Milionário é menos sobre dinheiro e mais sobre identidade. É o desejo desesperado de se afastar da palavra “pobre” — não mudando a realidade, mas o discurso.
É vestir o terno do patrão no imaginário, ainda que o uniforme da firma esteja sujo de graxa.
E talvez o mais trágico de tudo seja isso: o portador da Síndrome do Milionário não percebe que não está subindo de classe, está apenas mudando de lado na narrativa — defendendo quem nunca o defenderia.
Enquanto ele sonha em abrir sua “holding”, o verdadeiro milionário abre uma garrafa de champanhe.
Um celebra a liberdade de empreender; o outro, a liberdade de nunca precisar trabalhar de novo.
E assim, entre posts sobre meritocracia e reels de “mindset milionário”, o portador da síndrome adormece satisfeito.
Com o bolso vazio.
Mas com o ego recheado.






























